quinta-feira, 6 de março de 2008

Crise de existência?

O homem buscava se relacionar, se engajar, se integrar com a urbanidade. Hoje, a urbanidade já o devorou para dentro de seu estômago violento e turbulento, roubando-lhe o tempo e até o próprio "ser" desse homem contemporâneo. A vida, a verdadeira vida terrena, que é mais real do que essa transfiguração criada dela, reside num passado atemporal e tão distante que é justo pensar que nunca existiu.
Talvez seja tarde demais para um retorno. Ou, talvez, tal retorno tenha sido sempre impossível - seria uma marcha inexorável da humanidade? Mas para onde ela nos levará? Qual é o fim do mundo?
Provavelmente nada disso importe, pois tudo acaba com a morte. Estamos fadados à perder a vida. Talvez por isso, agora me ocorre, que precisamos chorar assim que abandonamos a segurança do útero de nossas mães. Conheço a explicação científica disso, mas esta outra me parece mais importante, pois sinto que há algo de fortemente simbólico nessa estranha necessidade.
Mas o que importa, afinal, é o que nos espera depois da morte. Há várias hipóteses e uma delas é a correta - ou todas são, ou nenhuma delas (o que dá no mesmo, aliás), mas isso depende da crença de cada um. Mas será que a Verdade, sendo desconhecida por descuido ou ignorância, nos impelirá para o que houver de pior depois da morte - isto é, se assumirmos que há algo depois dela. Se me permitem, na minha opinião, a imortalidade é que está depois da morte e a alma é responsável por isso. Disso eu tenho certeza, mas há muitas outras dúvidas...
Ah, às vezes dá preguiça de existir!

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Há sapos no meu jardim

Inquietos,
saltam na grama,
mas nada acontece.

Entediados,
esperamos
E nos observamos.

Seus olhos baços
São profundos
E sagazes.

As fibras do meu corpo
Nervosamente se agitam,
Pois os sapos também.

Tudo é verde,
Verde da natureza
E verde que enjoa.

Os sapos também são verdes.
Mas nada nunca acontece. Ainda...
Decerto eu sou verde também.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Passos no Escuro

Naquela manhã tudo parecia o mesmo, exceto ela mesma. Acendeu um cigarro barato, sem se levantar da cama. Era mais um dia, depois de outros tantos, iguais. Mas porque se sentia assim? Uma sensação estranha, um pressentimento que lhe arrepiava os pelos e os bigodes. Levantou-se, vestiu-se, ajeitou seus cabelos enchendo-os de grampos diante do espelho (se achava bonita), tomou um gole de café frio e saiu.

Um vento morno beijava seu rosto, o que lhe fez lembrar o beijo que seu filho tinha lhe dado de madrugada, antes de sair. Era a primeira vez que o moleque ia trabalhar, numa fazenda de um homem bem rico. Quando ele saiu, pediu para Deus tomar conta dele. Era seu único filho, tinha 15 anos apenas. Estava preocupada, talvez fosse isso.

Enquanto lavava as louças, varria, passava pano nos móveis, aquele sentimento ainda continuava latente em seu espírito. Trabalhava em um hotel, depois ia para uma lanchonete da mesma patroa, trabalhar na chapa fazendo lanches. Morava com seu filho e sua mãe. Era separada, pois seu marido, cheio de vícios e sempre desempregado, era do tipo que achava que o tratamento a base da força dos braços era o ideal com a mulher. Aturou-o por tempo demais, pois tinha medo dele, mas um dia finalmente criou coragem e o denunciou. Sempre foi muito medrosa e achava que essa era coisa mais corajosa que tinha feito em toda a sua vida, embora tivesse tido conseqüências desagradáveis - uma marca de uma pequena cicatriz em seu rosto. Entre outras marcas, além da solidão.

Uma vez foi até o forró com umas colegas do trabalho. Estava bonita, enfeitada e colorida. Como ninguém a chamava para dançar, dançava sozinha. Um homem se aproximou dela, muito bonito. Era baixo, calvo e barrigudo. Achava um charme quando ele sorria e mostrava seu dente de ouro.

- Paguei uma fortuna nele.

- Nossa- exclamou ela, impressionada.

Dançaram juntinhos a noite toda. Ele, sempre com um copo na mão, cada vez mais sorridente. Tinha um cheiro forte de perfume. Devia ser rico. Que sorte! Quando o forró acabou, ele a chamou para irem embora juntos, disse que a levaria para casa. Ela concordou.

No caminho, disse que nunca tinha sentido algo assim na vida, que era amor à primeira vista, que ela era linda. Ela ria, satisfeita, pois se achava mesmo bonita. Então ele a fez parar e beijou-a, com bafo de pinga. Ela se afastou.

- Vai com calma- disse ela, rindo.

Ele riu- seu dente brilhava no escuro- e enlaçou com firmeza sua cintura, beijando-a mais uma vez. A boca dele engolia a dela.

- Parece coisa de novela!- disse, depois, com o batom vermelho borrado.

- Vem comigo- disse ele.

- Onde?

- Vem.

Agarrou sua mão com força.

- Ai!- reclamou, pois estava doendo.

Aonde ele queria levá-la? Chegaram em um beco escuro, tinha uma lata de lixo ali perto e um fedor de esgoto vinha de algum ralo. Encostou-a num canto, pressionando-a com sua barriga contra a parede, enquanto arrancava a sua roupa com violência.

- Que é isso?- perguntou ela, apavorada.

Ele sorria apenas. Ela tentava empurrá-lo, mas ele era muito forte. Jogou-a no chão e se debruçou sobre ela. Queria gritar, mas ele tampava sua boca com a mão gorda. Agora ela chorava e se sentia enjoada com o perfume que ele exalava, misturado com o fedor do esgoto. Mas ele sorria, sempre, e durante todo o tempo seu dente reluzia na escuridão.

Estava varrendo o tapete da recepção do hotel quando o telefone tocou. Sua patroa tinha dado-lhe permissão para atender ao telefone quando não houvesse ninguém para isso. Parou de varrer, meio irritada por ter sido interrompida, pois era comum não ter ninguém para atender ao telefone, que tocava toda hora.

- Pronto?

Mas desligaram do outro lado.

Praguejando baixinho, voltou ao que fazia, ainda sentindo aquele pressentimento, aquela coisa estranha que a acompanhava desde que tinha acordado.

A poeira que levantava do tapete fazia-a espirrar. Diziam que era alergia, mas sua mãe dizia que era frescura.

- Nunca vi pobre ter alergia!- dizia ela.

Não estava se sentindo muito bem. Seria essa sensação a alergia? Mas não, estava assim desde manhã. Sentiu um arrepio mais uma vez. Varreu com força, levantando mais poeira, tentando sacudir do espírito essa coisa, essa frescura. Nossa! Como o tapete estava empoeirado! Essa coisa estranha poderia sair junto com os espirros. Varria com mais força e aos poucos uma nuvem de poeira crescia ao seu redor.

Entre espirros, varrendo incessantemente, ficou desesperada, pois a poeira a sufocava. Alguma coisa se aproximava! Era essa sensação que vinha, que ficava cada vez mais forte, espirrar não adiantava. Algo se aproximava, entre a nuvem de poeira. Pegou em seu braço. Que mão gelada!

Parou. Era a sua patroa, que estava meio assustada, pois a chamou e ela não respondeu.

- Você está bem?- perguntou ela.

- Sim, senhora.

- Queria lhe dizer algo.

- Pode falar(estava chegando).

- Tenho uma notícia ruim para dar(sim, estava chegando, no fundo sentia): ligaram da delegacia (ai!), um primo seu morreu.

- Primo!?- exclamou(tinha se afastado, ou estava camuflado?).

- É. Você está dispensada, por hoje.

- Qual primo?

- Não me deram detalhes. Lá eles lhe dirão.

O delegado não brincava com coisa séria. Era um homem severo, enquanto engordava e fumava seu cachimbo atrás da mesa de seu escritório em sua nobre posição. Justiça era o seu nome e a verdade era o seu escudo. E sabia somar a isso uma justificável delicadeza, embora questionável e não muito respeitável. Principalmente por essa última característica, foi que ele achou ser a pessoa mais apropriada para o que ia fazer.

- Sua patroa deve ter lhe falado que seu primo morreu.

- Sim, senhor- respondeu ela, tímida porém inquieta na cadeira em frente à mesa do delegado.

- Pois é verdade.

- Qual primo, senhor delegado?

- O filho de sua tia, o mais novo, mas qual era o nome dele mesmo?

- José Carlos?

- Esse!- exclamou o delegado, soltando uma baforada de fumaça.

- Cadê a minha família?

O delegado franziu o cenho e crispou os lábios, levemente irritado.

- Tome isso- disse ele, oferecendo uma caneca para ela- É suco de uva.

Ela olhou para o líquido do copo. Bebeu um gole. Era mesmo suco de uva.

- Tome mais- disse ele, sorrindo o mais agradavelmente possível para a sua carranca.

Bebeu mais um outro gole.

- Tome tudo!

Ela bebeu o resto de uma só vez.

- Isso- disse ele, carinhosamente.

- Então, senhor delegado, cadê a minha família?

- Ouso dizer que lhe liguei primeiro, pois sabia onde encontrá-la e é perfeitamente visível que, apesar de ser uma tarefa eminentemente factível e ordinariamente exeqüível para mim, é rara...

Porque ele falava assim? Não estava entendendo nada do que ele dizia. E toda aquela estória! Não era tão burra, podia ver que ele estava inventando. Não era boba, podia sentir o que era. Sentia antes como um arrepio, uma mão gelada e agora tinha chegado de vez. Começou a se desesperar.

- Eu não sou boba, senhor delegado. Não é meu primo que morreu.

- Como é que é?

- Não é ele que morreu.

- Oras, por que diz isso?

- Porquê eu sei!- respondeu, com as mãos trêmulas, e o desespero crescia.

- Como pode saber?

- Porquê é meu filho!- exclamou, se levantando da cadeira e explodindo em lágrimas.

Mas sentiu uma moleza, uma fraqueza tão grande! Sentou-se de novo. O que estava acontecendo? Sentia-se fraca, sonolenta. Apesar disso, tinha certeza que era o seu filho. Não sabia como podia ter tanta certeza, mas não duvidava. Era ele.

- Fique calma, não foi seu filho quem morreu- disse o delegado, tranqüilo, se levantando (tinha que se levantar, achou-a surpreendentemente alta quando ela o fez)- Ele está bem, não foi ele.

- Eu sei que foi!- disse, com voz fraca, sem conseguir se levantar apesar do esforço que fazia, se remexendo na cadeira- Não mente pra mim.

- Foi ele, não vou mentir- disse o delegado, delicado- Caiu e quebrou o pescoço num poço na fazenda em que trabalhava. Já fizeram a autópsia.

Ele abriu a porta do escritório, saiu e logo voltou com uma marmita de plástico nas mãos.

- Isso era dele, não?- perguntou o delegado.

Era a marmita que tinha preparado para ele levar para o trabalho. Então era mesmo o seu filho.

- Onde ele está?- perguntou, chorando sem parar.

- Acho melhor a senhora não vê-lo ainda, está muito abalada.

- Mas eu quero ver!

- Agora não.

Mas era o seu filho! Por que não podia vê-lo? Queria se levantar, para ir atrás dele, e passaria por cima de qualquer um que tentasse impedir. Até mesmo do delegado. Mas estava fraca. E com muito sono, mas o que sentia não ia deixá-la dormir. Angustiada por estar impotente, continuou sentada, em mudo desespero, chorando. No colo segurava a marmita, que já estava fria.

Não tinha agüentado ficar até o fim do enterro, quase desmaiou ao ver o caixão ser lacrado. E se ele não conseguisse respirar lá dentro? Foi embora para a sua casa antes de tudo terminar.

A desgraça tinha entrado na sua casa sem bater e as moradoras que restaram sentiam o seu terrível efeito. Sua mãe, já de idade, estava triste, porém serena, e, mais do que nunca, não largava o seu terço.

- É por isso que eu ainda estou de pé- dizia.

Mas para ela mesma não adiantava, pois nem para isso tinha forças. Seria essa a solução? Estava desapontada por Deus ter lhe tirado o filho. Pois de quem era a culpa, então? Diziam-lhe para ir igreja, para rezar mais, mas nada disso ia trazer seu filho de volta.

Era como se um pedaço de seu coração tivesse sido lhe arrancado e no lugar tivesse ficado um vazio. Às vezes sentia que se uma brisa soprasse de repente ia se desvanecer no ar, desaparecer, como uma poeira ínfima, que ninguém vê. Emagrecia e tinha cada vez mais fios de cabelos brancos na cabeça. Não tinha coragem de sair de casa, nem para trabalhar. Sua patroa tinha lhe dado uma semana de dispensa, mas já fazia duas semanas que ela não trabalhava. Decerto já tinha perdido o emprego. Mas não se importava. Não se importava nem consigo mesma.

Ficava vagando pela casa, como um fantasma. Ora ia até o quarto de seu filho, olhava para a sua cama vazia, chorava, chorava, chorava sempre, todo dia. Ora ficava deitada no chão da sala, sentindo o piso frio nas costas, olhando para o teto e muitas vezes acontecia de anoitecer e ela ainda estar ali, pálida como um cadáver. Dormia ali mesmo. E sentia muito frio, mesmo quando enterrada sob cobertores. Era como se o manto gelado da morte estivesse acariciando a sua pele, cobrindo o seu espírito. (Sentia que a Morte estava próxima, mas tão distante! É que, no fundo, tinha uma convicção, um crença na vida, e não queria morrer.).

Até que um dia sua patroa lhe fez uma visita, a primeira após o enterro.

- Por que você não voltou para trabalhar?

- Não sei.

- Bem, se você quiser, ainda pode voltar para o hotel. Sabe, é melhor trabalhar, assim você se distrai. Olha como você está!

- É.

- Essas coisas acontecem, mas a vida ainda continua. E a faxineira que eu arrumei não limpa bem como você. Vá amanhã lá, eu não vou descontar o seu salário dessas semanas que você não veio- disse ela, generosa- Você pode voltar a trabalhar como se não tivesse saído.

Sua patroa era uma mulher chique, toda arrumada, cheia de anéis, pulseiras e com bonitos brincos. Não quis nem se sentar, ficou de pé perto da porta. Disse que era uma visitinha rápida, prática(e conveniente).

No dia seguinte voltou a trabalhar. Suas amigas do hotel deram as boas vindas.

- Achamos que você já tinha se matado!- disseram.

Trabalhava mais do que nunca, saía cedo de casa e só voltava à noitinha, quando sua mãe já estava dormindo. Sua patroa dizia que era bom para distrair, esquecer a desgraça, por isso tinha que trabalhar bastante. Ela mesma achou melhor, pois enquanto limpava, ou ficava à noite na chapa da lanchonete, jogava um véu fino sobre o pensamento do seu filho. Além do mais, já estava mesmo acostumada a trabalhar.

Num domingo saíra mais cedo do trabalho, durante à tarde. Não queria voltar para casa, por isso ficou vagando pelas ruas. Estava fora de si mesma, à mercê de suas próprias pernas, que a levavam para onde bem entendiam. Não sabia o que estava acontecendo consigo mesma, na verdade nem tinha consciência de que algo acontecia. O vazio em seu coração parecia ter se expandido pelo corpo até a alma, e sua cabeça estava vazia, oca. Qual era o sentido de tudo isso?

De repente se assustou, alguma coisa a despertara de seus devaneios. Olhou para trás, viu um caminhão. O motorista parecia nervoso. Mas por quê? Ah, sim, estava parada no meio da rua. Era isso. Ele a xingou, fez um gesto obsceno. E ela retribuiu, brava, saindo do caminho. Estava errada? Ou será que, no fundo, não tinha a razão? Ele não entendia a sua dor. E doía muito... Ele não se importava com ela, talvez nem os outros... Será? De qualquer forma, ela os perdoava. Afinal, as pessoas são assim mesmo, não?

Nunca foi de muitas palavras, nunca soube como se expressar direito. Não terminou o primário, pois precisava trabalhar. E as pessoas percebem essas coisas, achava. Pensavam que ela era uma ignorante, uma burra, uma mulher fácil de se enganar. E ninguém a entendia. Será que vivia sozinha? Será que, se algum dia morresse, alguém ia sentir sua falta? Ainda tinha sua mãe. Mas só e, mesmo assim, elas não conversavam muito entre si. Amavam-se, sim, mas uma não tinha muito que dizer para a outra - não sabiam como dizer. Só falavam bobagens, coisas idiotas!

- A gente é idiota!- disse para si mesma.

Bem, ao menos sua mãe falava bem, era mais entendida. Não saía da igreja e o padre gostava muito dela.

- Mas eu não.

Ela mesma não era como a mãe. Talvez fosse mesmo burra e os outros estivessem certos. Era ignorante e tudo mais. Talvez nem bonita fosse! Um abismo a separava dos outros. Mas, sendo assim, por que existia?

- Eu e uma formiga é a mesma coisa. Só que eu tenho mão, pé, cabeça, perna, coração...

É verdade! Ela tinha coração. E sabia pensar. Então era igual aos outros ou, pelo menos, parecida.

- Uma formiga não pensa. Não sente. Isso é ser humano.

Ficou espantada consigo mesma. Nunca tinha se sentido tão inteligente, nem tão igual aos outros. Talvez falasse pouco por ter medo de que os outros achassem-na ignorante. Mas e se fosse? Isso não mudava o que era. Era um ser humano também.

De repente parou. Estava em frente à igreja que sua mãe freqüentava: Igreja de Santa Rita, simples, pequena. Rezar não adiantava, mas entrou. Os bancos estavam vazios e um silêncio de paz pairava no ar. Raios de sol penetravam oblíquos através dos vitrôs laterais e espalhavam uma luminosidade dourada por todo o ambiente. Sentada, fez uma oração: que Deus a ajudasse a superar o que passava, pelo menos isso, já que tirou o que era dela. E agora, o que mais podia dizer? Ficou quieta, com as mãos juntadas sobre o colo, de cabeça baixa. Mais nada. Estava se levantando para sair quando lhe chamaram.

- Como você está, minha filha?

- Vou indo, padre.

- Faz tempo que não vejo você aqui.

- É.

- Não gostaria de se confessar?

- Pra quê?

- Para contar seus pecados, minha filha- disse o padre, sorrindo.

- Mas eu não sei se eu tenho pecado.

- Não sabe? Mas todos têm pecados! Venha, vamos comigo ao confessionário.

Ela seguiu o padre, que logo entrou por uma portinha e ela por outra, dentro de uma cabine de madeira.

- Pode contar os seus pecados.

- Mas eu não sei nenhum.

O padre soltou um longo suspiro.

- Sua mãe me disse que você estava em depressão, desde que seu filho morreu.

Então era esse o nome do que estava sentindo, depressão? Um nome tão pequeno.

- É uma doença?

- Pode-se dizer que sim- respondeu o padre- Sabe, minha filha, tudo o que Deus faz tem um motivo. Não conhecemos os seus desígnios, por isso não podemos descobrir qual é ele. Mas devemos aceitar, nos conformar, pois se seu filho morreu é porque era a hora. E ele deve estar num lugar melhor, com certeza.

Como o padre falava bonito!

- Obrigada, padre- respondeu ela.

O padre estava tentando consolá-la. Pelo menos ele se importava com ela, afinal. Mas ainda se achava injustiçada.

- Deus não podia ter tirado o meu filho de mim.

- Deus pode tudo e não nos cabe julgá-Lo.

- Mas... e se Deus não existir?

- Como disse? Se Deus não existir? É claro que Ele existe! Não fale blasfêmias! Ele pode lhe castigar por isso.

Mas não era sua culpa se tinha dúvidas. Pois se ele é bom, porque fez isso com ela? Não conseguia entender.

- Eu já fui castigada, padre.

O padre ficou quieto. Tamborilava com os dedos a madeira, suspirando.

- Não adianta explicar. Você não vai entender.

- Mas o senhor entende?

- Entendo, mas não com a cabeça.

- E como o senhor faz isso?

- Não tem como explicar, só é preciso ter fé.

- Mas o senhor já viu Deus?

- Claro que não! Mas eu já pude senti-Lo perto de mim. Já notei o dedo Dele em coisas que acontecem. .

Ela ficou quieta. Era difícil de entender, por isso mastigava, sem engolir de uma vez, para digerir melhor o que o padre tinha lhe falado. Então as coisas acontecem porque Deus quer. Seu filho morreu porque Ele quis, mas por quê? Qual era o sentido de tudo isso? Só tinha trazido dor e sofrimento, os sintomas de sua doença.

- Tem remédio, padre?

- O remédio quem vai descobrir é você. Eu só lhe sugeri um caminho. Reze, minha filha, reze muito.

Quando saiu da igreja não saberia dizer se se sentia melhor ou pior, mas (coisa estranha) sentia uma espécie formigamento dentro de si. De qualquer forma, apesar do esforço, entendeu bem pouco do que o padre lhe dissera.

- Mas ele gosta de mim- disse para si mesma.

O padre se importava. E também sua mãe, que pediu para o padre conversar com ela. Até mesmo sua patroa, talvez, pois pediu para que ela voltasse a trabalhar para se distrair da dor. Não estava tão sozinha como achava. Ou melhor, estava sozinha apenas em parte, se é que isso é possível.

Estava chegando perto da onde seu filho, de bicicleta, costumava esperá-la chegar do trabalho, perto de um terreno baldio, e a acompanhava até sua casa. Ele se importava com ela. Mas ele tinha morrido e por isso era impossível ela se importar com ele.

E de repente ela o viu, parado perto do terreno baldio, sentado em cima da sua bicicleta e acenando com uma alegria quase infantil no rosto. Será que estava sonhando? Mas era ele mesmo que estava ali, iluminado pelos derradeiros raios do sol, que se punha para além da rua, nos morros altos. Não sabia o que fazer. Estacou de repente, contemplando-o, esfregando os olhos não porque não acreditava no que via, mas porque as suas lágrimas, insistentes, embaçavam a sua visão. Não conseguia parar de chorar. Era isso a que chamavam de felicidade?

Mas foi um momento. Aos poucos o sol se pôs, as lâmpadas dos postes começaram a se acender e seu filho se foi. E ela continuou a chorar, enquanto caminhava para a sua casa. Como ela o amava! Agora percebia: nunca, nunca ia deixar de se importar com ele.

Quando chegou, encontrou sua mãe agarrada ao terço, como sempre.

- Por que você está chorando?- perguntou ela.

Mas não pôde evitar: a abraçou. Tinha esquecido qual tinha sido a última vez que o tinha feito! Como a amava também! E se importava com ela. Importava-se com todos! Com o padre, com sua patroa, com as colegas do trabalho. Sim, sim! Amava-os! Era inevitável. Amava as pessoas!

- É o amor, mãe!-exclamou ela, afinal, gargalhando.

Sentia-se preenchida. E, apesar de todo o resto, a vida ainda seguia em frente e ela precisava continuar caminhando.

***

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

É tudo conversa.
Tudo: nada é o que parece.
Há algo mais...

Os olhos desejam o indizível.
A boca fala automática:
Não é fiel ao pensamento.

O pensamento...
Filtrado,
Limpo, depurado.

O que sobra?
BLÁ BLÁ BLÁ
É tudo conversa.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

"Tive a sorte de possuir vários amigos admiráveis, e contam-se muitas anedotas sobre eles. Algumas dessas anedotas- lamento, mas me orgulho em revelar- foram cunhadas por mim. Entretanto não são falsas; são essencialmente verdadeiras. De Quincey dizia que todas as anedotas são apócrifas. Creio que, cuidasse ele em se aprofundar no assunto, teria dito que são historicamente apócrifas, mas essencialmente verdadeiras. Se contam uma história de uma pessoa, então essa história se parece com a pessoa; essa história é seu símbolo.Quando penso em amigos meus tão caros como Dom Quixote, o sr. Pickwick, o sr. Sherlock Holmes, o dr. Watson, Huckleberry Finn, Peer Gynt etc. (não estou certo se tenho muito mais amigos), sinto que as pessoas que escreveram suas histórias estavam 'contando- história', mas que as aventuras elaboradas eram espelhos, adjetivos ou atributos daquelas pessoas. Ou seja, se acreditamos no sr. Sherlock Holmes, podemos olhar com escárnio para o cão dos Baskerville; não precisamos temê-lo. Digo, enfim, que o importante é acreditarmos num personagem."- Jorge L. Borges.
Não sabia por onde começar e resolvi postar esse trecho escrito pelo argentino "guardião da biblioteca universal". Nossa, exagerei. Acho até que viajei. Estava tentando preencher a falta de um comentário decente sobre o trecho. Preenchi com ar. Daria no mesmo que dizer: é um trecho excelente do ótimo Jorge Luis Borges, cuja obra é maravilhosa. Minto: assim ficaria melhor.
É que hoje eu estou meio vazio, um ótimo estado para se iniciar um blog. Há dias em que eu fico meio assim, ou isso não passa de uma desculpa pela minha falta de criatividade para postar algo aqui. É que eu não consigo deixar de pensar que alguém pode ler isso. Dizem que sou anti-social, mas não é que eu penso de mim mesmo. Não tenho muita certeza, mas eu me conheço melhor do que os outros e acho que, na verdade, um pedaço de mim é que é insociável. E, no fundo, acho que é esse pedaço que eu pretendo demontrar aqui, por isso estou bloqueado. Ou isso também não passa de uma desculpa.
Aliás, sou meio dado a auto-análise. Eu não suporto pessoas que só falam de si mesmas! Como sou hipócrita... Não, sou sinceramente hipócrita.
Agora que me dei conta: desperdicei J.L.Borges. Mas vou compensar: todo esse nada que eu escrevi é meu símbolo, no sentido borgiano. Interpreto um personagem, o Nada é a minha máscara, usada para ocultar o meu caos interno e minha essência contraditória. Ou isso não passa de uma desculpa. Mas só peço uma coisa: não acreditem nesse personagem e sim no que está por trás dele.
Agora chega, quero separar o autor de sua obra, se é que isso é possível. Estou com náuseas de tanto falar de mim mesmo! Mas escrever qualquer coisa, de certa forma, é estar sempre num estado de vertigem: antes de cada palavra, tem-se a sensação de estar no alto de uma montanha russa.